(Relator: Ricardo Costa) O Supremo Tribunal de Justiça veio considerar que, «no âmbito de um contrato de prestação de serviço médico, assente em procedimento cirúrgico de extração, o profissional médico assume uma obrigação de resultado quanto à referida extração com anestesia local, e uma obrigação de meios, quanto à aplicação da técnica adequada e conveniente a esse resultado, assim como no que respeita à atuação envolvente a essa técnica, de acordo com as regras da medicina aceites e seguidas no universo da especialidade (leges artis) à data da intervenção e a conjugação dessas regras com os específicos conhecimentos científicos exigidos ao médico e à sua experiência acumulada. Às obrigações típicas da parte contratual médico aplica-se o princípio geral da responsabilidade contratual, tal como prevista no art. 798.º, n.º 1, do CC, bem como a presunção de culpa, estatuída no art. 799.º, 1, do CC. Registando-se ofensa de direito subjetivo absoluto da contraparte (art. 70.º, n.º 1, CC; arts. 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP) ou norma legal de proteção de interesse alheio na execução desse contrato, estamos perante um concurso de responsabilidade civil negocial/contratual – incumprimento ou cumprimento defeituoso – e de responsabilidade civil extra-negocial/contratual (abrangida na previsão do art. 483.º, n.º 1, do CC). No caso do contrato de prestação de serviço médico, esta última responsabilidade deve ser, em princípio, absorvida ou consumida pela responsabilidade contratual, se a esta houver lugar (e, nesse sentido, houver esse concurso de responsabilidades de diferente natureza, inclusive para o ressarcimento de danos não patrimoniais), sem prejuízo de se poder convocar (em método híbrido de conjugação) as regras jurídicas da responsabilidade delitual sempre que tal se verifique mais adequado à vertente de não cumprimento estrito do contrato e à sua singular ilicitude não negocial (a começar pela consideração do art. 486.º do CC). Indagar a responsabilidade contratual quanto à execução da obrigação (de resultado e de meios) por parte do profissional médico é sindicar a falta de realização integral da prestação devida (arts. 762.º, n.º 1, e 763.º, n.º 1, CC) ou a sua realização defeituosa e/ou a prática de erro de tratamento imputável ao médico nos instrumentos e técnicas utilizados (em razão da conformidade com as regras de leges artis) para a obtenção do resultado acordado para o tratamento/intervenção. A essas obrigações típicas de e na realização do ato médico acresce, em razão de um dever lateral de conduta abrigado nas obrigações secundárias em relação ao cumprimento da prestação principal, ainda que dela se autonomize, imposto pela boa fé objetiva e pela lealdade e confiança que dela derivam para tutela e proteção das posições jurídicas das partes (art. 762.º, n.º 2, do CC), a obrigação de proteção e conservação da integridade física e saúde do paciente (em ultima ratio, a própria vida), que, pela natureza personalista do contrato demandante do serviço médico, não pode deixar de integrar o respetivo âmbito de obrigações exigíveis na esfera de proteção do contrato, no interesse de prevenir consequências indesejáveis decorrentes da prossecução do seu fim e da relação intersubjetiva estabelecida; a lesão da pessoa tutelada – o paciente – deve considerar-se ilícito na forma de violação contratual (positiva, enquanto defeito de cumprimento), resultante do dever de cuidado necessário para evitar esse dano pessoal, suscetível de ser desencadeado pela atividade que a parte devedora está obrigada a executar ou legitimada para realizar contratualmente. O “erro médico” consiste na consecução dessa obrigação de meios com descaracterização e desadequação aos fins do procedimento ou tratamento, numa ação ou omissão reveladas numa tríptica perspetiva comportamental: imprudência, imperícia e negligência. A referida obrigação de meios, integrada num quadro abstrato, típico e comum de atuação onde se subsume a situação concreta, exige que o profissional médico realize e concretize os procedimentos que, com a certeza possível e adquirida de acordo com as práticas médicas estabelecidas e disponíveis (não sendo a medicina uma ciência dotada de exatidão plena) e as evidências conhecidas e cognoscíveis à data da intervenção e/ou da tomada de decisão, sejam aptos a evitar e a impedir as lesões ou as perturbações da incolumidade física e psicológica do paciente, para além daquela ou daquelas que são inerentes à própria intervenção em que consiste o ato médico “invasivo” (se assim for). Não é de exigir que se adotem procedimentos que se destinam a evitar cenários que se colocam no domínio da anormalidade (absoluta ou relativa) e/ou da imprevisibilidade manifesta – enquanto inibições para atuar em ordem à evitabilidade objetiva do resultado -, à luz de um padrão de tratamento aceite pela comunidade científica no momento da intervenção médica, a seguir pelo agente médico medianamente competente, prudente, informado e sensato, acrescido da exigência adicional que é de solicitar a um profissional com a qualidade de especialista, com maior grau esperado de conhecimento, perícia e competência, agindo nas mesmas e análogas circunstâncias. É com este conteúdo e densidade que se constrói um verdadeiro dever objetivo de cuidado ou de diligência, mais ou menos qualificado, no cumprimento das regras aceites e conhecidas da ciência da medicina e da arte traduzida na prática médica como critério de ilicitude. Assim densificado, só com a violação do dever de cuidado – avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas referidas legis artis – é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjetiva e com conteúdo ético, averiguando-se no plano de uma ilicitude de conduta de acordo com o cânone exigível a esse profissional medianamente considerado. A averiguação de “erro médico” coliga a averiguação deste dever objetivo de conduta (contrapartida da obrigação de meios quanto aos deveres de conduta profissionais) com o cumprimento do dever lateral de proteção da integridade e da saúde (que também se assimila a um dever de cuidado). Nessa averiguação, não subsiste erro de tratamento se o método cirúrgico e a sua envolvência e preparação são aceites como válidos e adequados numa operação sem complexidade especial, à luz do padrão aceite â data da escolha e da execução do tratamento, para aquela situação em concreto, comunicados (esclarecimento terapêutico) e consentidos pelo paciente de forma livre e esclarecida, sem conhecimento pelo médico de especialidades que ditassem adaptações (leges artis ad hoc) e sem indicação de alternativa cientificamente comprovada de técnica e procedimento que fossem cautelarmente preventivos do evento ocorrido no organismo da paciente, antes surgindo a convicção probatória que o insucesso do ato médico e os danos resultantes se deveram a circunstâncias incontroláveis e indiferentes à aplicação da técnica adequada e da sua preparação anterior (álea relativa às condições pessoais do doente e das suas particularidades biológicas endógenas, no domínio da anormalidade e da imprevisibilidade). A ilicitude no incumprimento do contrato de prestação de serviço médico é justificada quando se interrompe supervenientemente a execução para cumprimento do dever lateral de preservação da integridade física e corporal, seja por cumprimento de dever imposto por lei relativo a direito absoluto com eficácia erga omnes (v. arts. 25.º, n.º 1, da CRP, e 70.º, n.º 1, do CC) – que afasta a ilicitude do incumprimento contratual (violação do direito de crédito correspetivo) em face do cumprimento de dever de eficácia superior ao dever obrigacional de realização da prestação contratual devida -, seja porque o cumprimento do dever lateral acessório inserido no contrato, relativo à tutela dessa mesma integridade e saúde, assume dignidade axiológico-normativa superior em relação a esse dever de cumprimento da prestação devida (art. 335.º, n.º 2, do CC). Mais do que isso: se ocorre uma circunstância superveniente, não imputável ao devedor médico, assente em facto involuntário e não culposo do credor paciente, que levou a que se frustrassem as condições para o devedor, naquele momento e naquele contexto contratuais, realizar o comportamento devido, tal implica a impossibilidade objectiva (não temporária) da prestação e à consequente extinção da obrigação (arts. 790.º e 792.º, n.º 1, do CC). O nexo de causalidade adequada, que o art. 563.º do CC impõe como pressuposto da responsabilidade, exige causa jurídica e não causa médica, que integra e se conexiona com a própria determinação do carácter ilícito do comportamento devido. Para esse efeito, é causa adequada o facto (ativo e/ou omissivo) se e quando os danos são uma sua consequência normal, típica e ordinária segundo a regra comum, e, por regra, previsível na esfera concreta do sujeito lesante, desde que, para além das situações de certeza inequívoca, o critério da probabilidade medeie a causalidade médica em termos positivos. Não é causalmente adequado o facto se não era de todo provável a sua ocorrência, de acordo com a posição do “observador experimentado” médio e, no caso, dotado dos conhecimentos médicos exigíveis (“médico normal”), colocado na posição concreta (pessoal, espacial e instrumental) do agente lesante médico, e em referência ao momento de verificação do dano (aqui, originariamente, o incumprimento do contrato), não sendo de imputar ao comportamento médico o evento e o resultado lesivo subsequente, que se tornou indiferente ao processo causal enquanto conjunto de circunstâncias que pudessem aumentar ou condicionar essencialmente o risco de verificação do dano – logo, fora da “esfera de risco” que se assume aprioristicamente com o procedimento, pois esta é a esfera que dialoga com a previsibilidade e, por maioria de razão, com a probabilidade causal conducentes à responsabilidade».