(Relator: Arlindo Crua) O Tribunal da Relação de Lisboa veio considerar que «a responsabilidade do Estado por factos ou atos, com fundamento constitucional enunciado no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, é extensível às situações de erro judiciário, fundado naquele princípio de responsabilidade patrimonial do Estado decorrente de danos causados pelo exercício das diversas funções estaduais, entre as quais a função jurisdicional. A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas passou a ter uma natureza global ou abrangente através da Lei nº. 67/2007, de 31/12, na qual passou a estar prevista, de forma sistemática, por referência ao exercício das diferentes funções estaduais: a função administrativa, a função jurisdicional e a função político-legislativa. A responsabilidade civil por erro judiciário está, deste modo, sujeita a um regime específico próprio, o que é justificável pela especial natureza da função atribuída aos tribunais, podendo o mesmo consubstanciar-se em erro de direito ou erro de facto – cf., o nº. 1, do artigo 13º, de tal diploma. O requisito inscrito no citado nº. 2, do artigo 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – exigência da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente – não pode ter qualquer aplicabilidade quando está em equação a aferição da responsabilidade do Estado Português por violação do direito da União, imputável a ato materialmente jurisdicional. Efetivamente, tal pressuposto processual de responsabilidade inscrito no nº. 2, do artigo 13º. da Lei nº. 67/2007, exigindo a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, é incompatível com as exigências do direito da União, afetando, nomeadamente o princípio da efetividade e a proibição de obstrução. A responsabilidade de cada um dos Estados membros pela violação do direito da União tem o seu fundamento material ou substantivo no próprio direito da União Europeia. Os pressupostos substantivos de responsabilização dos Estados membros, por omissões e atos imputáveis aos tribunais nacionais violadoras do direito da União, tem por fonte ou matriz os previstos para a responsabilidade dos Estados membros em geral, e são definidos pelo próprio direito da União. Efetivamente, os princípios estruturantes da ordem jurídica criada pelos Tratados são igualmente aplicáveis na definição da responsabilidade civil extracontratual dos Estados membros por atos da função jurisdicional, inclusive os praticados por atos dos tribunais superiores, tendo, nessa matéria, o TJUE criado uma verdadeira teoria de responsabilização dos Estados-membros decorrente da inobservância do quadro legal comunitário. Nomeadamente, deve verificar-se: violação de uma norma atributiva de direitos aos particulares (norma de proteção); tal violação deve ser suficientemente caracterizada ou manifesta; um dano na esfera do lesado e um nexo de causalidade necessária entre a violação daquela norma e o prejuízo sofrido pelo lesado. Na análise de tais pressupostos ou requisitos substantivos de responsabilização dos Estados membros deve ter-se em especial atenção as especificidades da função jurisdicional e os valores a esta associados – certeza, segurança jurídica e paz social -, justificando-se que exista maior exigência na caracterização daqueles pressupostos de responsabilidade, em comparação com a exigência colocada na aferição da responsabilidade decorrente da violação do direito da União por parte dos demais poderes do Estado – legislativo e executivo. Tal exigência concretiza-se através da introdução do elemento especial ostensividade da violação do direito da União, que acautela a natureza de excecionalidade (induzindo uma aplicabilidade relativamente rara) que subjaz à responsabilidade dos Estados-Membros decorrente de ações e omissões praticadas no exercício da função jurisdicional. Sendo tal responsabilidade de natureza excecional, tem apenas como destinatária a tutela de situações em que esteja em causa a especial gravidade de violação do direito aplicável, ou seja, a violação do normativo jurídico europeu tem de ser manifesta, isto é, evidente e muito grave, devendo-se estar perante comportamentos violadores patentes do direito da União, nos quais subjaza uma manifesta ignorância do direito aplicável, devendo a violação configurar-se óbvia ou claramente reconhecível (indagando-se se o juiz ao atuar poderia, e deveria, ter reconhecido tal desconformidade com o direito da União). Sendo clara e evidente a natureza de excecionalidade de tal responsabilidade, não se basta com uma interpretação comprovadamente errada, conducente a uma decisão errada, pois esta, por si só, não determina a existência de erro judiciário manifesto, ostensivo e indesculpável, antes se exigindo estar perante um erro clamoroso na interpretação e aplicação do direito da União, ou seja, perante uma evidente falha na interpretação da norma ou olímpica ignorância da obrigação de reenvio. Incumbe aos tribunais nacionais, e não ao Tribunal de Justiça (por via de colocação de questão prejudicial), concluírem pela existência ou não, no caso concreto, de uma violação suficientemente caracterizada, com natureza de manifesta ou ostensiva. A ação de responsabilização civil dos Estados membros, decorrente de ato ou omissão do poder judicial, não afeta o princípio do caso julgado, pois, para além de não estarmos perante a identidade de partes, pedido e causa de pedir – o objeto da ação de responsabilidade não é o mesmo da ação que suscita a ação de responsabilidade -, a decisão positiva a proferir no âmbito da ação de responsabilidade não revoga a decisão proferida pelo tribunal nacional que seja considerada lesiva do direito do particular. Efetivamente, aquela decisão a proferir no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado apenas identifica ou enuncia o erro judiciário e, provado o dano e nexo causal entre aquele ato ilícito e este prejuízo, determina a reparação dos danos causados ao particular. Incumbe ao direito nacional de cada um dos Estados membros a conformação dos requisitos processuais ou adjetivos, nomeadamente a determinação do tribunal competente e a definição ou conformação processual da ação de responsabilidade. Os pressupostos materiais ou substantivos do direito interno de responsabilidade civil (em princípio, não aplicáveis, em virtude da preferência concedida aos requisitos ou pressupostos materiais do direito da União), bem como os pressupostos formais ou adjetivos do direito interno (concretamente aplicáveis) não podem condicionar ou frustrar a efetividade da responsabilização fundada no direito da União, decorrente da violação deste. Por outro lado, a responsabilidade dos Estados membros, por danos causados por decisão judicial violadora do direito da União, não deve estar limitada a qualquer juízo de dolo ou culpa grave na administração da justiça, antes se verificando objetivamente, ainda que inexista qualquer dolo ou culpa grave, pois basta-se com o preenchimento do conceito de erro manifesto e grave na interpretação e aplicação do direito da União. Também no plano do direito interno, e nos termos do nº. 1, do artigo 13º, da Lei nº. 67/2007, o incumprimento do dever de reenvio prejudicial por parte do tribunal nacional, em virtude de fundar-se num erro de interpretação e aplicação do direito da União, é igualmente suscetível de preencher o conceito de erro judiciário. No mesmo plano de direito interno, as expressões manifestamente e grosseiro inculcam a ideia de uma responsabilidade excecional, restringida às situações de erro grave ou erro muito grave, as quais devem ser interpretadas em sintonia com o conceito de ostensividade e de excecionalidade previsto para a responsabilidade dos Estados membros quando esteja em causa erro de interpretação e aplicação do direito comunitário. Caso ocorram dificuldades de compatibilização entre as categorias dogmáticas utilizadas no plano normativo interno de responsabilidade – manifestamente, grosseiro, erro grave ou muito grave – e as conceptualmente utilizadas pelo direito da União para circunscrever a responsabilidade dos Estados membros pela violação do direito europeu, por parte da função judicial stricto sensu – violação manifesta ou ostensiva -, deve prevalecer o entendimento emanado do TJUE, atento o princípio da prevalência ou primado do direito europeu. Estando na plena disponibilidade dos Estados membros baixarem o limiar da responsabilidade, caso resulte da aplicabilidade do direito substantivo interno um regime de responsabilidade estadual mais favorável para o particular, do que resultaria da aplicabilidade do direito da União Europeia, deve dar-se preferência àquele, o que se justifica por dever ser totalmente operatória a primazia de aplicação do direito da União sobre o direito interno de cada Estado, atentos os deveres de lealdade e cooperação decorrentes do artigo 4º, § 3º, do TUE, devendo tal ser controlado por parte dos tribunais nacionais aplicadores do direito, que, assim, dever-se-ão abster de aplicar o direito nacional conflituante com o direito da União. A obrigação de submissão de questão prejudicial surge quando: se está perante um tribunal que decide em última instância e que se depara com uma questão controversa de interpretação e aplicação do direito da União Europeia. A violação do dever de reenvio prejudicial para o TJUE por parte dos tribunais nacionais configura uma conduta que pode originar a responsabilidade do Estado membro, pois tal também é tradutor de uma errónea interpretação do normativo jurídico comunitário. Mesmo nas situações em que o reenvio se configura como obrigatório – questão suscitada em processo pendente perante tribunal a decidir em última instância, cf., o § 3º, do artº. 267º, do TFUE -, pode o mesmo ser dispensado caso a questão seja considerada irrelevante ou impertinente para a resolução do caso concreto; caso inexista dúvida razoável acerca do modo como deve ser interpretado o direito da União Europeia por referência à concreta questão suscitada – doutrina do ato claro; caso tal questão esteja claramente estabelecida ou definida pela jurisprudência do TJUE – doutrina do ato clarificado; e, em estreita conexão com a antecedente, caso a questão a colocar ao Tribunal de Justiça seja materialmente idêntica a uma outra que já foi objeto de decisão, com carácter prejudicial, em assunto análogo. Caso o tribunal nacional não proceda ao reenvio de interpretação, em virtude de considerar, ainda que de forma errada, que inexiste dúvida razoável quanto à forma de interpretar a questão (ato claro), ou que esta está devidamente estabelecida ou definida pela jurisprudência do TJUE (ato clarificado), tal não significa, necessariamente, um desencadear de responsabilidade do Estado-membro por ato omissivo da função jurisdicional stricto sensu. Efetivamente, a existência de um erro judiciário não configura, necessariamente, uma violação suficientemente caracterizada do direito da União Europeia, pois o mesmo pode, desde logo, ser desculpável, em face das pertinentes circunstâncias concretas. Para que possa ocorrer efetiva responsabilidade extracontratual do Estado, decorrente da violação da obrigação de suscitar o mecanismo do reenvio prejudicial, deve ocorrer uma dupla violação, ou seja, para além da violação processual, deverá ainda ocorrer violação substantiva. Não basta, assim, o mero incumprimento da obrigação de submissão ao TJUE da questão prejudicial (violação processual), exigindo-se, adicionalmente, que tenha ocorrido uma incorreta interpretação ou aplicação do direito da união, ou violação de um direito de um particular (violação substantiva) que, caso a questão prejudicial tivesse sido colocada, teria sido acautelado».

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