(Relatora: Ana Paula Boularot) O Supremo Tribunal de Justiça veio considerar que «o princípio geral que rege a matéria da responsabilidade civil é o que vem consignado no artigo 483.º do CC, segundo o qual aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, de acordo com o disposto no artigo 487.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. Constituem pressupostos do dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos a existência de um facto voluntário do agente e não de um facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjetivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquela. Do iter factual apurado, resulta inequivocamente que o comportamento do peão violou o disposto nos artigos 99.º, n.os 1 e 2, al. a), e 101.º, n.º 1, do C. Estrada, quando aí se prevê que “os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados, ou na sua falta, pelas bermas (n.º 1); Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: a) quando efetuem o seu atravessamento; os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”, o que significa que a vítima agiu com culpa, tal como se concluiu no acórdão recorrido. A vexata quaestio daqui é a de saber se podemos assacar ao condutor do veículo alguma responsabilidade a título de riscos próprios do veículo, como vem decidido, o que determinou uma situação de concorrência entre culpa e risco. A ilação tirada pelo segundo grau, traduzida no silêncio do veículo mostra-se excessiva, porquanto tendo o acidente ocorrido em 2017, já depois da entrada em vigor do Regulamento n.º 540/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16-04-2014, que determinou a instalação do sistema AVAS (Acoustic Vehicle Alerting System) e do Regulamento Delegado (UE) 2017/1576 da Comissão, de 26-06-2017, o qual definiu os requisitos de ensaio para os níveis mínimos de emissões sonoras do AVAS em marcha avante e marcha-atrás, bem para a mudança de frequência do som emitido, seria imperioso questionar se o veículo elétrico seguro na ré estava ou não munido do apontado sistema sonoro, ou não, e para tal, as mencionadas características, deveriam ter sido objeto oportuno de alegação e prova, o que não aconteceu. Mas, mesmo que por mera hipótese de raciocínio académico assim se não entendesse, nunca poderia o tribunal, sem mais e à partida, fazer impender sobre um veículo elétrico um risco, estimado em 20%, pela sua circulação silenciosa, sem sequer cuidar de apurar, segundo critérios de adequação e proporcionalidade, tendo em atenção as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, qual teria sido a efetiva contribuição dos “riscos próprios do veículo”, reduzidos estes apenas ao silêncio por ser elétrico, para a produção do resultado danoso em paralelo com a atuação do peão, tendo em atenção a gravidade da culpa desta, traduzida num atravessamento inopinado de uma faixa de rodagem com trânsito, distraída, de costas para a circulação, a falar com as colegas à saída do trabalho, sem dar qualquer possibilidade à condutora de efetuar uma manobra para evitar o embate. De outra banda, sempre seria mister apurar, segundo as regras gerais, nessas circunstâncias específicas, se o silêncio da circulação daquele veículo teria sido ou não determinante para o atropelamento, ou se esse silêncio passaria sempre desapercebido face ao ruído do restante trânsito. Nestas circunstâncias mostra-se afastada uma qualquer possibilidade de concorrência entre culpa e risco, na medida em que a aceitação desta figura implicaria, sempre, a constatação da contribuição do veículo para a produção do resultado, o que in casu não se apurou, acrescendo ainda que a condutora conduzia no cumprimento das regras de circulação rodoviária e por forma a evitar o resultado produzido, o qual só ocorreu por culpa exclusiva do peão, cujo comportamento se mostrou violador daquelas mesmas regras cujo cumprimento lhe era igualmente exigido. As normas estradais, constantes do C. Estrada e demais diplomas que regulam o trânsito são dirigidas aos automobilistas e também aos peões, disciplinando-se assim o comportamento humano, quer na condução, quer na circulação a pé, de molde a evitar os constrangimentos naturais daí advenientes. O Tribunal de Justiça, no acórdão de 09-06-2011 proferido no processo C-409/09 (Ambrósio Lavrador) concluiu que as Diretivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano. Sendo a jurisprudência do Tribunal de Justiça no sentido da existência de obrigação da interpretação conforme, ou seja, que as jurisdições nacionais devem, na medida do possível, interpretar o respetivo direito à luz das diretivas comunitárias (ainda que não transpostas) de acordo com os artigos 249.º e 5.º do Tratado CE, não podemos deixar de interpretar as normas nacionais sobre a responsabilidade civil objetiva em conformidade com tais diretivas, de onde, apesar de se admitir face às mesmas a compatibilização da culpa com o risco, por a tal se não opor a legislação portuguesa, a concatenação a fazer não pode deixar de efetuar uma análise criteriosa da atuação dos intervenientes por forma a apurar qual a contribuição que cada um teve para a produção do resultado, fazendo afastar o risco, quando se prove que tal contribuição foi exclusiva do lesado».

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